Gratuidade da justiça para vítimas de violência doméstica
- ellenvvicentim1
- 8 de mar. de 2022
- 3 min de leitura
No “Livro do Desassossego”, Fernando Pessoa escreveu “nós nunca nos realizamos. Somos dois abismos – um poço fitando o céu”. Fazendo uso da licença poética para iniciar o texto, a comemoração (?) de mais um dia 08 de março, Dia Internacional da Mulher, nos leva a pensar que “nós nunca nos realizamos. Somos mulheres fitando (de longe) nossos direitos”.

Os direitos das mulheres já são garantidos por uma grande quantidade de leis, mas a efetividade deles continua sendo um problema em razão da raiz patriarcal da estrutura da nossa sociedade.
Como revelou a pesquisa “Visível e Invisível: a Vitimização de Mulheres no Brasil", uma em cada quatro mulheres sofreu algum tipo de violência no ano de 2020, durante a pandemia. Essa mesma pesquisa revelou que, embora o índice geral tenha permanecido estável desde 2019, houve uma queda da violência ocorrida “na rua” e um aumento bastante significativo da violência ocorrida dentro de casa.
O curioso é que nesse mesmo ano de 2020, a Lei Maria da Penha, que visa proteger as mulheres em situação de violência doméstica, completou seus 14 anos.
Os principais objetivos dessa lei são a criação de mecanismos para coibir e prevenir a violência contra a mulher, e estabelecer medidas de proteção para as mulheres que já experimentaram algum tipo de violência.
É com base nessa lei que os entes públicos têm o dever de dar destaque no currículo escolar a conteúdos sobre direitos humanos, equidade de gênero, raça e etnia, possibilitar que a mulher vítima de violência doméstica matricule os filhos em escola mais próxima da sua residência, possibilitar, ainda, a remoção da vítima funcionária pública para outra cidade.
Mas um dos direitos das mulheres que a Lei Maria da Penha garante e é muito negligenciado pelo Poder Judiciário ao tratar sobre os casos de violência doméstica é a assistência judiciária gratuita para ações que visam resolver problemas jurídicos que, muito provavelmente, nasceram da abusividade e violência do relacionamento, tais como divórcio, guarda, alimentos.
Nesses casos, sequer é necessário averiguar a capacidade financeira da vítima para o pagamento de custas processuais, tendo em vista o disposto no artigo 9º, III, da Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha):
III - encaminhamento à assistência judiciária, quando for o caso, inclusive para eventual ajuizamento da ação de separação judicial, de divórcio, de anulação de casamento ou de dissolução de união estável perante o juízo competente.
O artigo 28 da mesma lei tem redação parecida:
Art. 28. É garantido a toda mulher em situação de violência doméstica e familiar o acesso aos serviços de Defensoria Pública ou de Assistência Judiciária Gratuita, nos termos da lei, em sede policial e judicial, mediante atendimento específico e humanizado.
Isto porque a vulnerabilidade da mulher, inclusive patrimonial, é presumida quando experimenta uma situação de violência, pois é de conhecimento geral que com a separação de fato e o divórcio, aumentam as despesas pessoais. Além disso, a facilitação ao acesso gratuito à justiça é um importante meio para a emancipação feminina já que enfrenta, mesmo que parcialmente, o problema da dependência econômica do agressor.
No entanto, apesar de tais dispositivos legais, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo ainda é recalcitrante ao conceder o benefício da gratuidade da justiça às vítimas de violência doméstica, como se pode analisar do caso trazido abaixo, como exemplo:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. Casamento. Ação de divórcio cumulada com pedidos de guarda e alimentos. Gratuidade da Justiça. Rejeição. Certeza do pronunciamento. Pessoa física. Simples declaração que não basta à obtenção do benefício. Elementos que, ademais, demonstram a capacidade financeira da autora. Medida protetiva. Tema que está afeito à Lei Maria da Penha. Competência própria dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar ou, supletivamente, das Varas Criminais. Precedentes. Decisão resguardada. RECURSO DESPROVIDO. (TJSP; Agravo de Instrumento 2256528-41.2020.8.26.0000; Relator (a): Beretta da Silveira; Órgão Julgador: 3ª Câmara de Direito Privado; Foro de Mogi das Cruzes - 2ª Vara da Família e das Sucessões; Data do Julgamento: 10/11/2020; Data de Registro: 10/11/2020).
Importante lembrar, neste dia 08 de março e sempre, que as diferentes formas de violência (psicológica, moral, sexual, física e patrimonial) costumam coexistir nos relacionamentos abusivos e é dever do Poder Judiciário coibir todas elas e proporcionar meios para que as sobreviventes tenham condições de lutar pelos seus direitos.